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02/11/2023

ITD mobiliza municípios baianos de residência de pessoas que frequentemente migram para trabalhar nas colheitas de café em Minas Gerais para integrarem o Programa CAFÉ

“Sobre o Programa CAFÉ:”

O “Programa CAFÉ: Colaboração, Autonomia, Fortalecimento e Empoderamento de Trabalhadores/as” é implementado pelo Instituto Trabalho Decente em estreita parceria com o Fundo Global para o Fim da Escravidão Moderna (GFEMS), que também coordena e financia a iniciativa por meio de um Acordo de Cooperação com o Departamento de Estado dos Estados Unidos da América.

 

Bonito, Canarana, Lapão e São Gabriel. Quatro cidades baianas onde residem parte significativa de trabalhadores migrantes que foram resgatados do trabalho escravo nas colheitas de café no sul de Minas Gerais. A equipe do Instituto do Trabalho Decente (ITD) esteve na região nos meses de abril e agosto de 2023 e constatou semelhanças entre os trabalhadores resgatados e sobre as condições socioeconômicas desses quatro municípios. O foco da visita foi sensibilizar e mobilizar atores locais estratégicos para a problemática que existe nas cidades, bem como pactuar um compromisso da agenda do trabalho decente assumida pelo Programa CAFÉ, na perspectiva de construção coletiva de estratégias de prevenção do trabalho escravo.

Dentre as semelhanças apontadas, destaca-se a falta de emprego e de geração renda como duas das principais características em comum observadas pelos técnicos do ITD que lá estiveram, sendo mais da metade da população com renda mensal de até meio salário-mínimo. Este cenário de falta de oportunidades vulnerabiliza trabalhadores, podendo explicar a tendência migratória em busca de trabalho.

Perfil econômico e social das cidades visitadas pelo ITD, conforme IBGE Cidades, Instituto Palmares e Ministério de Desenvolvimento Social:

  • São essencialmente rurais.
  • Falta de postos de trabalho formais e informais.
  • Histórico geracional de migração para a produção de café no Sudeste.
  • Nas quatro cidades visitadas, a maioria da população vive com até meio salário-mínimo per capita, representando pelo menos 65% dos moradores. Além disso, uma parcela significativa encontra-se em situação de extrema pobreza, correspondendo a pelo menos 23% da população.
  • Mais de 89% da renda local é gerada a partir de fontes de fora das cidades.
  • Juntas, as quatro cidades possuem 45 comunidades quilombolas certificadas.

A partir dos encontros da equipe do ITD com representantes estratégicos do poder público municipal, incluindo os Prefeitos e Vice-prefeitos, bem como organizações da sociedade civil e comunidades locais, percebeu-se que parte da população economicamente ativa sem acesso postos de emprego e oportunidades locais de geração de renda se desloca para a região do sudeste brasileiro, principalmente para o estado de Minas Gerais. Além disso, outra característica que chama atenção é a prevalência de pessoas pobres, negras e quilombolas entre os que migram em busca de trabalho nas fazendas de café.

As semelhanças entre Bonito, Canarana, Lapão e São Gabriel não estão somente no porquê do fluxo migratório para o Sudeste, mas também nos desafios enfrentados a partir do retorno desses cidadãos inscritos em situação de trabalho escravo no café. Os atendimentos na área da saúde se intensificam pelo retorno dos trabalhadores adoecidos, com problemas respiratórios devido a inalação de pesticidas, ao frio, ao alcoolismo e com infecções sexualmente transmissíveis. Na área da educação, o abandono, a evasão e a repetência escolar são predominantes, sobretudo entre as crianças e adolescentes que acompanham seus pais nas colheitas; já na assistência social, os pedidos de cestas básicas aumentam durante o período em que os trabalhadores se deslocam para a colheita do café. As escutas demonstram que parece haver um problema sociocultural entre os trabalhadores por acreditarem que esse tipo de condição de trabalho é o melhor que eles podem conseguir. Além disso, há dificuldade de se reconhecerem em situação de trabalho escravo, potencialmente por desconhecimento do crime.

“A pobreza tem cor”

Através do contato direto da equipe do ITD com representantes locais, foi possível compreender o perfil dos trabalhadores resgatados como sendo compatível ao que se observa nos dados nacionais de resgatados. De acordo com os dados do  SmartLab, entre 2002 e 2022, a grande parte dos trabalhadores resgatados é composta por homens, jovens entre 18 e 30 anos, 74% são pretos e pardos e a maioria com escolaridade até o 5°ano incompleto – sendo 24% dos resgatados analfabetos.

É possível dizer que uma das razões da continuidade do trabalho escravo no Brasil tem origem na situação de vulnerabilidade socioeconômica de trabalhadores. Ao analisar este perfil social e econômico dos municípios mobilizados sobre os dados dos resgates de trabalhadores na colheita do café e em Minas Gerais, o paralelo é evidente. Segundo a Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, Minas Gerais teve o maior número de ações fiscais com trabalho escravo encontrado (117 do total de 462 em todo país) em 2022, com um resgate de 1.081 trabalhadores. Adicionalmente, de acordo o SmartLab, nos últimos cinco anos, o cultivo do café foi o setor com maior prevalência de trabalhadores encontrados em situação análoga a de trabalho escravo (1.162 pessoas resgatadas). Minas Gerais foi o estado com a maior quantidade de trabalhadores resgatados do trabalho escravo (3.141 pessoas resgatadas).

Os impactos da escravidão moderna se apresentam na sociedade como um todo e, portanto, a exploração da força de trabalho precisa ser combatida de forma articulada e em rede, envolvendo atores do setor público, privado e da sociedade civil que atuam em diversas frentes. Além disso, entendeu-se também que a ausência de oportunidades decentes de trabalho nesses municípios frequentemente resulta em uma dinâmica de migração laboral nas colheitas de café em Minas Gerais.

Dessa forma, alinhado às ações de prevenção do trabalho escravo nas colheitas de café que vêm sendo desenhadas pelo Programa CAFÉ, o Instituto Trabalho Decente entendeu a importância de iniciar um processo presencial de pactuação junto aos quatro municípios citados. O processo, que foi formado por ações de mobilização, sensibilização e pactuação junto a técnicos, gestores e Prefeitos, objetiva a implementação de ciclos formativos sobre o trabalho escravo, o tráfico de pessoas e a migração justa, junto aos trabalhadores rurais e aos servidores públicos municipais de Bonito, Canarana, Lapão e São Gabriel.

Em Canarana, a equipe do ITD esteve com Vice-Prefeito e os gestores das secretarias municipais de saúde, educação, agricultura, administração, assistência social, desenvolvimento econômico e social para apresentação e pactuação do Programa CAFÉ. Além destes atores, e buscando maior aproximação à realidade de trabalhadores que migram para trabalhar em outros estados, a equipe técnica do ITD também visitou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Canarana, Associações de Trabalhadores Rurais e Associações de Agricultores Familiares. Durante a sensibilização apontaram uma série de prejuízos ao município e seus cidadãos que poderiam ser resultado do trabalho escravo.

 

No centro, Vice-Prefeito de Canarana

 

Núcleo Raízes do Sertão de Canarana

 

Ao longo do processo de pactuação da iniciativa em Lapão, o Instituto Trabalho Decente contou com a participação do Prefeito, gestores e os técnicos do município, destacadamente os da secretaria de educação. A partir da sensibilização ao tema, apresentaram um contexto social e econômico marcado por indicadores significativos de evasão e abandono escolar e conseguiram identificar outros possíveis impactos históricos e culturais do trabalho escravo no município. Alguns dos problemas apontados durante a conversa foram: a manutenção do ciclo da vulnerabilidade e pobreza, baixo desenvolvimento econômico na região, ausência de mão de obra qualificada para trabalharem nas culturas agrícolas da própria cidade, impactos na saúde pública etc. Os servidores públicos de Lapão se perceberam sensibilizados e dispostos a engajar de maneira colaborativa nos ciclos formativos que serão implementados pelo ITD.

 

Prefeito de Lapão

 

Servidores Públicos de Lapão

 

Em São Gabriel estiveram presentes ao longo do processo de pactuação do Programa CAFÉ, o Prefeito e as secretarias municipais de agricultura, educação, saúde, assistência social, infraestrutura e gestores do seguro-desemprego e do bolsa família. Segundo eles, não é incomum ouvir que “eu não estudei, então isso está bom”, ao questionar os trabalhadores sobre as condições degradantes que enfrentam nas fazendas de café, demarcando a importância de atuação do ITD na cidade enquanto agente preocupado em resgatar — ou construir — suas percepções enquanto sujeitos de direito.

 

Prefeito de São Gabriel

 

Servidores Públicos de São Gabriel

           

Em visita ao município de Bonito, a equipe do ITD identificou um diferencial em comparação com os outros três. Por possuir uma relação histórica com o café, tendo sido, inclusive, uma região de forte plantação cafeeira, a alta incidência de trabalhadores bonitenses que migram para o café em outros estados pode ser resultado de uma cultura geracional de trabalho nessa cultura. Percebendo o histórico e relacionando com o observado em outros municípios, o Programa CAFÉ foi apresentado ao Prefeito e aos gestores municipais das secretarias da agricultura, desenvolvimento econômico e social e da assistência social, que tem como gestora uma mulher quilombola e que preside uma Associação de Quilombola e apresentou contribuições essenciais para a realização do projeto considerando as dinâmicas específicas de Bonito. O entendimento dos gestores municipais foi da necessidade das ações de formação voltadas às comunidades quilombolas porque, além de serem as principais pessoas que migram para trabalhar no café, vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica mais intensa que outros povoados de Bonito. Segundo a secretária de assistência social, a maior vulnerabilidade das comunidades quilombolas se dá porque “a pobreza tem cor e é preta”.

 

Prefeito de Bonito

 

Servidores de Bonito

 

Durante os processos de sensibilização e articulação nos quatro municípios identificados, apresentou-se as ações pretendidas em âmbito do Programa CAFÉ, destacadamente os ciclos formativos que focarão nos temas relacionados ao trabalho escravo, tráfico de pessoas, migração digna, direitos trabalhistas e canais de denúncia do trabalho escravo e tráfico de pessoas. Após sensibilização dos participantes nos quatro municípios baianos, as ações pretendidas pelo Instituto Trabalho Decente foram pactuadas.  

Ao longo das visitas o ITD frisou que migrar é um direito de todas as pessoas, e que o café possui uma importância histórica para a sociedade brasileira. Não é objetivo do Instituto, tampouco do Programa CAFÉ, coibir a migração para o trabalho em outras cidades nem impedir que o trabalhador colha o café. Também ficou evidente a necessidade de se pensar o trabalho escravo enquanto um problema de classe, raça e gênero, que deve ser combatido e prevenido a partir de abordagens transversais e em rede. Essa perspectiva interseccional de análise, considera o impacto do trabalho escravo na sociedade como um todo, e entre as dinâmicas particulares de funcionamento de cada cidade.

Por: Caroline Bonfim.